quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Levo os sapatos e mais... por Carmen Monteiro

Olho pra baixo e lá estão novamente desamarrados, andando em corredores brancos de limpeza obrigatória, enquanto seus solados só fazem barulho e rastros pelos chãos imaculados.
Olho pra baixo e penso que deveria ter trocado os sapatos por algo mais confortável e menos barulhento, pois me incomodam sapatos que me embrutecem o caminhar.
"Basta a vida" é o que me vem à mente, mas pensando melhor, estou sendo dura com a vida que nem tem sido tão dura assim, não comigo, não posso reclamar, o problema é ela ser dura com os que estão à minha volta, pois esta é uma situação que não deixa de doer em mim.
Então, em adição à toda dor, lá estão estes sapatos, como extensões de meus pés, sapatos duros, barulhentos, um tanto sujos da lama feita da última pancada de chuva fora no caminho mal pavimentado até aqui.
Sei bem que o problema não são os sapatos, raramente são os sapatos o grande problema.
Porém, recorrer a culpa aos sapatos é mais um modo infantil de lidar com a dor que sinto por não poder exinguir a dor de quem sofre neste instante.
Um recebe o diagnóstico inesperado de doença grave no mesmo dia em que deveria estar no casamento da filha.
Mas que dia pra saber de um nome exato dos sintomas que vem sentindo há tantos meses! Não poderia ter piorado aquele pouco mais, dias depois? O que motivou a criação deste instante nesta vida?
Outro sente a solidão da palavra que não consegue articular. fico imaginando como será pensar e não ouvir sua própria voz. Pergunto se anda recebendo visitas da família, só pra ter o que me comunicar com ele e ter um leve entendimento do que ele ta´mbém anda absorvendo do que vive. Ele responde com os olhos vazios que sim, recebe visitas enquanto sei que a realidade é outra ao mesmo tempo penso se não serão os anjos que o visitam, afinal, eu creio em anjos.
Digo que amanhã estarei novamente com ele e que espero vê-lo melhor, mas quanto melhor poderá ficar sem conseguir verbalizar o que sente? Neste instante o que ele passa é também um pouco do que passo muitas vezes.
O outro se vê inválido em situação melhor, pois é temporária sua limitação, mas longa, o que não lhe dará outra alternativa a não ser aguardar com a paciência , que já demonstrou falência, aos longos de tantos meses acamado aguardando que seus ossos se acertem com a infecção surgida.
Falo da importância de ter algo mais a fazer além da televisão e das revistas. Saio pensando o quanto a cama incomoda e aquece as costas já aquecidas e limita particularmente o homem que não quer se reinventar quando o momento surge.
Enquanto entro e saio de quartos e vidas, os sapatos me seguem, desamarrados, ou quase, barulhentos, mas nem tanto, sujos, apesar de tê-los limpado no antigo capacho da portaria principal.
Levo junto os sapatos e as vidas que visito.